"A anemia falciforme, é a doença hereditária monogênica mais freqüente no Brasil, constituindo um problema de saúde pública. Ela é encontrada em todas as regiões do país, e, por isso, considerada como uma das doenças genéticas mais importantes no cenário epidemiológico brasileiro." (p.89)
"Como comenta Beiguelman, quando as moléstias infecto-contagiosas predominam, as práticas epidemiológicas orientam-se, evidentemente, no sentido da investigação dos agentes de doenças que se transmitem por contato, e cujo período de latência é, de maneira geral, relativamente curto. Entretanto, quando essas doenças ocupam plano menos relevante, os problemas dos epidemiologistas tornam-se bastante distintos. O agente da doença passa a estar ligado à relação reprodutiva entre os membros da família e da comunidade, e não mais à contigüidade dos comunicantes com o foco. Nesse caso, vários fatores devem ser considerados, como a composição genômica populacional e a dinâmica dos genes nas famílias e nas populações." (p.90)
"Estudos moleculares pioneiros de Kan e Dozy já haviam demonstrado que a mutação que originou o gene da hemoglobina S não foi um evento único, mas ocorreu em diversos locais e em diferentes épocas, dentro e fora do continente africano." (p.90)
"A hemoglobina S foi trazida às Américas pela imigração forçada dos escravos africanos. No Brasil, ela se distribuiu heterogeneamente, sendo mais freqüente onde a proporção de antepassados africanos da população é maior." (p.90)
"É importante ressaltar, por outro lado, que vários fatores, como a imigração interna e externa; a diminuição das taxas de casamentos consangüíneos, pela dissolução das comunidades rurais e dos isolados, em decorrência do processo de urbanização; o aumento da miscigenação, pelas facilidades de locomoção e comunicação, que propiciaram maior contato entre pessoas de origem diversa, etc, tornaram o problema da hemoglobina S extremamente dinâmico em nosso país. " (p.90)
“O projeto deste estudo foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Parecer nº 587/2003) e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Ministério da Saúde (Parecer nº 556/2004).” (P.90)
“Foram organizados em um software específico os dados de 817 indivíduos heterozigotos do gene da hemoglobina S (513 homens e 304 mulheres), não consangüíneos, com idades entre 18 e 65 anos (média de 31,62 anos e desvio-padrão de 9,81 anos), detectados voluntariamente entre doadores de sangue do Hemocentro da Unicamp, em Campinas, estado de São Paulo. Dentre esses indivíduos, 282 (34,5%) eram solteiros, 492 (60,2%) casados ou amasiados, 33 (4,1%) separados e 10 (1,2%) viúvos.” (P.90)
“O diagnóstico laboratorial do traço falciforme foi estabelecido mediante a eletroforese de hemoglobinas, pH alcalino, em fitas de acetato de celulose.” (P.90)
“Para estimar as contribuições gênicas dos caucasóides, negróides e indígenas na formação da população miscigenada de indivíduos portadores da hemoglobina S (constituição genômica da população), usou-se a metodologia recomendada por Beiguelman para o estudo de populações tri-híbridas, ou seja, a análise do sistema sangüíneo ABO.” (P.91)
“Os grupos sangüíneos do sistema ABO apresentaram as seguintes freqüências na amostra de indivíduos com a hemoglobina S: A: 30,9%; B: 13,7%; AB: 4,2% e O: 51,2%. A partir dessas freqüências fenotípicas, foi possível estimar as seguintes freqüências gênicas: alelo A: 19,5%; alelo B: 9,4% e alelo O: 71,2%.” (P.91)
“A presente pesquisa permitiu o estudo genético-epidemiológico de uma grande amostra de portadores do traço falciforme (817 heterozigotos AS), diagnosticados aleatoriamente em uma população do Sudeste do Brasil (Campinas, SP). Trata-se, aliás, de uma das maiores amostras de portadores do traço falciforme adultos, não consangüíneos e não relacionados obrigatoriamente a doentes homozigotos, detectada em uma mesma região e analisada do ponto de vista genético-epidemiológico, fora do continente africano.” (P.92)
“Trata-se, aliás, de uma das maiores amostras de portadores do traço falciforme adultos, não consangüíneos e não relacionados obrigatoriamente a doentes homozigotos, detectada em uma mesma região e analisada do ponto de vista genético-epidemiológico, fora do continente africano. Tendo em vista que a prevalência média de heterozigotos AS na população geral do Sudeste do Brasil é da ordem de 2%, essa casuística corresponde à triagem voluntária de cerca de 40.850 indivíduos da população.” (p.92)
“Trata-se de uma casuística constituída, na sua maioria, por adultos jovens, casados ou amasiados e, portanto, reprodutivamente ativos. Como cada portador do traço falciforme tem a probabilidade de 50% de transmitir o gene da hemoglobina S a cada filho(a), a manutenção do gene na população está preservada. Aliás, estudos recentes sobre o efeito materno têm sugerido que, no caso específico da mulher heterozigota AS, a probabilidade de transmissão do alelo mutante à prole é estatisticamente superior a 50%. A maior proporção de homens na casuística examinada pode ser atribuída ao fato de a triagem ter sido realizada entre doadores de sangue, uma vez que o gene da hemoglobina S está localizado em um cromossomo autossômico, mais especificamente no cromossomo 11.” (p.92)
“As freqüências dos alelos do grupo sangüíneo ABO são tradicionalmente usadas na estimativa da participação dos caucasóides, negróides e indígenas na constituição de populações tri-híbridas brasileiras. A grande diferença entre as freqüências desses alelos nas populações originais, que constituíram a população miscigenada, ou seja, europeus latinos, negros africanos e indígenas brasileiros contribui muito para esse fato. Os índios brasileiros, por exemplo, do mesmo modo que outros índios sul-americanos, eram originalmente todos do grupo sangüíneo O.” (p.92)
“Analisando a casuística de portadores da hemoglobina S estudada no presente trabalho, é possível observar que, embora o componente genômico negróide prepondere (45%), refletindo a origem predominantemente africana do gene da hemoglobina S, o componente caucasóide também é grande (41%), traduzindo o alto grau de miscigenação e, em menor escala, a contribuição em termos de hemoglobina S fornecida por alguns imigrantes (portugueses, espanhóis, italianos do sul e árabes). Não é de estranhar, portanto, que apenas cerca de 50% dos indivíduos examinados tenham revelado a ancestralidade africana no exame das suas características fenotípicas, principalmente pela cor da pele.” (p.92)
“É importante ressaltar que a composição genômica da casuística de portadores do traço falciforme mostrou-se significativamente diferente da observada na população geral de Campinas, na qual o componente caucasóide mostrouse maior, e os componentes gênicos negróide e, sobretudo, indígena, menores. Evidentemente, as contribuições genômicas menos significativas na constituição da população geral, tanto em termos quantitativos, quanto ao grau de miscigenação, não foram consideradas. Esse é o caso, por exemplo, dos descendentes de japoneses e de outros imigrantes não-latinos.” (p.92)
“A contribuição original do presente trabalho foi demonstrar que a imigração interna, sobretudo a de indivíduos originários do estado da Bahia, tende a diminuir, na população paulista, a proporção do haplótipo Bantu, associado a uma forma mais grave da anemia falciforme, com conseqüente aumento da proporção do haplótipo Benin, relacionado com uma forma mais moderada da doença. Tal alteração haplotípica deve ser ainda mais acentuada no estado de São Paulo do que a observada no presente trabalho, uma vez que muitos indivíduos da amostra de portadores da hemoglobina S, embora nascidos no estado de São Paulo, certamente possuem ancestrais nascidos no estado da Bahia. É importante ressaltar que, embora a imigração nordestina para o estado de São Paulo tenha se intensificado nas últimas décadas, o sucesso do empreendimento cafeeiro promoveu uma verdadeira drenagem para esse estado, já nas primeiras décadas do século XIX, de escravos procedentes dos engenhos açucareiros da Bahia e de Pernambuco.” (p.93)
“A informação obtida no presente estudo de que praticamente a metade da casuística de portadores da hemoglobina S é constituída por indivíduos com nível de escolaridade de, no máximo, o primeiro grau cursado, indica que o acesso à informação disponível e, sobretudo, a demanda espontânea à orientação genética podem ainda estar longe do desejável. Dessa forma, embora o problema do diagnóstico precoce e do tratamento dos doentes com a anemia falciforme tenha obtido um grande avanço com o Programa Nacional de Triagem Neonatal (teste do pezinho), a orientação dos heterozigotos ainda depende da implantação de um maior número de programas de genética comunitária que ofereçam a triagem voluntária e a orientação desses indivíduos, dentro dos mais rigorosos padrões éticos e científicos.” (p.93).